Na grandeza de Martín Silva
Avisei antes da bola rolar, lá no Twitter: o futebol é jogado ao nível do mar, o que se disputa a mais de 2000 mil metros de altitude deveria ser chamado de quadribol (leiam Harry Potter).
E foi exatamente o que aconteceu. Pelo alto, o Jorge Wilstermann marcou seus quatro gols e poderia ter feito ao menos outros três.
Quem imaginou que seria fácil a classificação cruz-maltina, ou não conhece a altitude ou desconhece o poder de emoção do Vasco. O último jogo tranquilo do clube talvez tenha sido em 97, naquele 6 a 0 sobre o União São João de Araras. Ainda assim, Edmundo – que fez os seis – perdeu um pênalti.
Veja bem, a capacidade vascaína de se complicar é tão grande, que a sensação que deu foi que os bolivianos já venciam por 3 a 0 antes mesmo do avião vascaíno pousar em terras estrangeiras. A diferença de tempo de bola era tão grande, que me arrisco a dizer que o primeiro gol boliviano saiu ainda na hora da novela da Globo. O que se acompanhou depois foi só o salto errado de Ríos, atrasado, como delay de transmissão.
A questão é que em 16 minutos de bola voando – pouco rolou -, o Vasco já era um time derrotado em campo. Se além de quadribol o adversário tivesse também um pouco mais de tino para o futebol, a eliminação carioca teria sido sacramentada antes do intervalo.
Era sabido que o Jorge Wilstermann pressionaria no início, principalmente pelo alto, para levar vantagem no tempo de bola antes que os cruz-maltinos se habituassem. Mas a facilidade obtida foi ainda mais evidente, assim como o erro de estratégia da comissão técnica de viajar no dia da partida.
O que o Vasco propiciou na Bolívia foi uma atuação 4D para a sua torcida. O vascaíno que não conhecia os efeitos da altitude passou a senti-los: falta de ar, dor de cabeça, náusea, fadiga, perda de apetite… Uma verdadeira experiência multidimensional.
Até que veio o milagre.
Ora, se tem uma coisa que o esporte sabe fazer bem é traçar grandes roteiros. Ao mesmo tempo que fez ressurgir o Wilstermann após a goleada no Rio, deu ao Cruz-Maltino uma última chance. Uma espécie de teste de fé.
Nos pênaltis, o espaço entre a bola e a rede se tornou muito curto para que a altitude da Bolívia seguisse relevante. A medida perfeita, porém, para a latitude de Martín Silva.
O Vasco entrou moralmente desclassificado para as cobranças, mas viu sua sorte virar numa troca de mãos. Lado direito, braço esquerdo, e Sucre de repente se colocou na altitude de São Cristóvão. E na amplitude de Martin.
A bola que antes voava em forma de pesadelo, agora realizava sonhos. E o Vasco, em uma noite repleta de vilões, finalmente encontrava o seu salvador.
A trave, caprichosa, ainda rebateria a bola de Desábato. Arrependida, beijou e acolheu a de Wellington.
Entre as duas cobranças, mais uma vez Martin. Mais uma vez na direita.
Rildo poderia ter garantido a classificação vascaína, mas deixar o camisa 1 fora da foto final seria injusto. A comemoração do goleiro é solitária, e nada mais individual do que o momento do pênalti. É o instante do arqueiro, não do atacante.
E lá foi ele, para a esquerda, roubar de Pirulito – Alex – o doce gosto da classificação.
Me atrevo a dizer que o homem que não se emociona ao ver seu time vencer uma disputa de pênalti, em plena Libertadores, já não beija enquanto faz amor. Já não há ali mais paixão.
E o vascaíno, que por 90 minutos teve medo de chorar, se orgulhou de suas lágrimas no fim. Graças a Martín.
Qualquer um pode se tornar um herói em um jogo de futebol. Até o montinho artilheiro ou a elevação de Sucre. Até a figura apagada de um juiz. Entretanto, só um pode deixar o gramado ovacionado como santo: o goleiro.
A ligação divina vem desde as armas que usam. As mãos que rezam são as mesmas que operam os milagres.
Não é à toa que ele veste uma camisa diferente dos outros, especial, confeccionada quase que por um alfaiate particular. É pra Deus não errar a benção.
E o que se viu em Sucre, foi a prova final da canonização de Martín Silva.